REFLEXÃO INICIAL SOBRE A TRINDADE
Os onze discípulos foram
para a Galiléia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. Quando viram Jesus,
ajoelharam-se diante dele. Ainda assim, alguns duvidaram. Então Jesus se
aproximou, e falou: "Toda a autoridade foi dada a mim no céu e sobre a
terra. Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos,
batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, e ensinando-os a
observar tudo o que ordenei a vocês. Eis que eu estarei com vocês todos os
dias, até o fim do mundo."
O que nos revela
este texto bíblico de Deus Trino?
Para buscar a resposta, caminhemos, com
nossa imaginação, junto com os discípulos para Galiléia, para o monte que Jesus
lhes tinha indicado.
Mateus começa seu evangelho, situando a
missão de Jesus na Galiléia (Mt 4,12-17), cidade pobre, para onde, ao concluir
o evangelho, os discípulos se dirigem. Desta maneira, diz que a missão da
Igreja se enraíza na mesma corrente da missão de Jesus.
Os discípulos, ao verem Jesus, se
ajoelham, reconhecem-no como o Senhor Ressuscitado. Esse gesto de adoração é um
ato de fé. Entretanto, havia, entre eles, alguns que duvidavam.
É formidável o realismo de Mateus, ao
fazer coexistir diante da mesma manifestação de Jesus, alguns que o adoram, e
outros que duvidam. Podemos reconhecer nessa pequena comunidade, a nossa Igreja
onde convivem luzes e sombras.
Mais ainda, podemos nos reconhecer cada
um/a de nós, que experimentamos diante da manifestação de Deus essa divisão
dentro de nós: "aqui está o Senhor, adoro-o", e outra parte que diz:
"mas será assim?.., será Ele?..., por quê..?".
Adorar o Senhor é uma graça, é resposta
ao dom de Sua presença, que nos cativa e surpreende. Por isso peçamos ao
Senhor que nos conceda esse presente que nos coloca de joelhos diante dele!
Desta maneira, apresenta-nos a Igreja
como discípula. Estão todos aos pés de Jesus, esperando ansiosamente que seu
Mestre lhes fale.
Preparemos também nós, nossos corações
para acolher as palavras do Senhor que ecoam até hoje. Nelas estão condensadas
o mandato missionário da Igreja de todos os tempos: "vão e façam com que
todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, e do
Filho, e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a
vocês".
Agora este envio de Jesus está precedido
e concluído por duas orações muito importantes que vamos a refletir a seguir.
As primeiras palavras de Jesus à sua
comunidade que está em torno dele: "Toda a autoridade foi dada a mim no
céu e sobre a terra". Pela mesma autoridade que ele recebeu do Pai, ele
autoriza aos seus seguidores a ir pelo mundo inteiro a continuar sua missão.
E como se fosse pouca essa autoridade
para levar adiante o projeto encomendado, Jesus promete estar sempre com os
seus: "Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do
mundo".
O Ressuscitado é o Emanuel, o Deus
conosco! E sua presença em nossa história, em nosso mundo está garantida para
sempre, porque sua promessa não só chega até nós, senão que se estende até o
final dos tempos.
As palavras "todos os dias",
nos comunicam a certeza de que em cada momento, que vivemos, agora mesmo, o
Senhor está conosco! Peçamos ao Espírito Santo que nos abra os olhos para
reconhecer, no hoje de nossa vida a presença do Emanuel.
O mandato missionário de Jesus a sua
Igreja nos revela o coração da Trindade. O desejo de Deus é que a humanidade
participe de sua vida de comunhão para a qual fomos criados.
Pelo batismo somos mergulhados na
Trindade e ela coloca sua morada em cada cristão/cristã, e começamos a formar
parte do povo congregado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
O teólogo grego João Damasceno usa uma
metáfora muito simples para explicar a comunhão e o movimento de Amor da
Trindade, a dança de roda! Essa dança tem uma característica especial: as
pessoas divinas se movem de tal forma que há sempre uma no centro e duas ao seu
redor.
No entanto, não se trata de uma dança
fechada, senão criativamente aberta. Desse movimento de amor surge a criação do
universo, da humanidade, de tal forma que o centro da roda passou a ser
"ocupado" pela criação, pelo ser humano, a ponto de Santo Irineu
dizer: "A glória de Deus é o ser humano vivo", acrescentando que
"a glória do ser humano é a visão de Deus", ou seja, participar dessa
dança, já agora nesta terra, para logo vivê-la plenamente na eternidade.
Assim, a missão da Igreja, que tem como
centro o ser humano, se coloca a serviço, especialmente daqueles que mais
precisam da centralidade e da atenção: os pobres, os que sofrem, as pessoas
portadoras de deficiência, como nos fazia lembrar a CF deste ano.
Para quê? Para que todos/as vivamos a
felicidade e a liberdade de ser parte desta roda de Amor, agora e sempre.
TEMA FRANCISCANO
José Lisboa Moreira de
OliveiraFilósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB.
Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de
Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade
Católica de Brasília
Corpus Christi: Momento para
repensar o mistério da Eucaristia
Na próxima quinta-feira, dia 7 de
junho, a Igreja Católica celebrará a solenidade de Corpus Christi. Creio que
tal celebração deveria ser revertida num momento para se repensar com toda
seriedade possível o mistério da Eucaristia. Deveríamos sair das pompas, ostentações
e luxo e nos voltarmos para o silêncio contemplativo e reflexivo.
O primeiro momento deste processo
reflexivo deveria ser um repensar a própria solenidade de Corpus Christi.
Sabemos que esta festa surgiu no auge de uma violenta crise pela qual passava a
Igreja Católica. A liturgia havia se sofisticado e se distanciado do povo. Era
celebrada em latim, língua não mais falada pelas comunidades. Além de serem
celebradas numa língua incompreensível, as liturgias eram pomposas, luxuosas,
uma verdadeira afronta aos pobres. Tinham se tornado uma coisa para o clero,
pois o povo fora reduzido a mudo espectador. Neste contexto corria solta a
simonia: a celebração dos sacramentos, especialmente da Eucaristia, dependia de
muito dinheiro. Assim, por exemplo, o preço da missa dependia do
modo como o padre erguia a hóstia consagrada durante a anamnesis, chamada de
"consagração”, e considerada o momento mais importante da missa. Quanto
mais alta a elevação, mais cara era a missa.
Por essa e outras razões a
liturgia ficou reduzida a mero devocionalismo. As pessoas não mais participavam
da Eucaristia e a tinham apenas como simples devoção. Iam às igrejas para
adorar o Santíssimo Sacramento e não para participar da Ceia do Senhor. A
situação ficou tão grave que a própria hierarquia determinou que se comungasse
pelo menos uma vez por ano, durante o período da Páscoa. Foi neste contexto que o
papa Urbano IV, em 1264, fixou a solenidade de Corpus Christi: uma festa para
adorar pública e pomposamente a hóstia consagrada. Portanto, a festa de Corpus
Christi, como veremos a seguir, é um desvirtuamento radical do significado
litúrgico do mistério do Corpo e do Sangue do Senhor. Ou, se preferirmos, uma
traição do pedido do Mestre: "Tomai e comei, tomai e bebei”.
Considero a festa de Corpus Christi, na forma como ainda é celebrada atualmente, um desvirtuamento litúrgico e uma traição do mandato de Cristo por várias razões. Antes de tudo porque Jesus não deixou dito que ele queria ser adorado pomposamente num ostensório luxuoso nas igrejas e pelas vias públicas de uma cidade. Colocar a Eucaristia, sacramento do simples e pobre pedaço de pão, num ostensório de ouro é, recordando São João Crisóstomo, ofender aquele que não tinha onde reclinar a cabeça.
Considero a festa de Corpus Christi, na forma como ainda é celebrada atualmente, um desvirtuamento litúrgico e uma traição do mandato de Cristo por várias razões. Antes de tudo porque Jesus não deixou dito que ele queria ser adorado pomposamente num ostensório luxuoso nas igrejas e pelas vias públicas de uma cidade. Colocar a Eucaristia, sacramento do simples e pobre pedaço de pão, num ostensório de ouro é, recordando São João Crisóstomo, ofender aquele que não tinha onde reclinar a cabeça.
Em segundo lugar porque o cerne
da Eucaristia está não na adoração, mas na refeição, na comida, na ceia. Ou, se
quisermos, o modo correto de adorar a Eucaristia é participar da ceia, é comer
do pão e beber do cálice. De fato, Jesus não disse "tomem e adorem, mas
tomem e comam, tomem e bebam”. A adoração eucarística surgiu por meio do
costume de se levar um pedaço do pão eucarístico para os doentes impedidos de
participar da celebração litúrgica dominical. E como se acreditava que aquele
pedaço de pão era o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, enquanto ele não
era levado e consumido pelo doente, era adorado como sacramento da real
presença de Cristo no meio da comunidade cristã.
O hábito de consagrar hóstias
apenas para trancá-las num "cofre dourado” e ser adorado pelas pessoas é
um costume que nasce no contexto de crise antes mencionado, quando se havia
perdido por completo a noção do mistério eucarístico. Portanto, é algo que
destoa do significado da Eucaristia para a comunidade cristã. As normas para o
culto à Eucaristia fora da missa, emanadas pelo próprio Vaticano, são muito
claras a este respeito. Chegam inclusive a dizer que se deve evitar neste culto
tudo aquilo que possa tirar da Eucaristia a sua natureza de alimento, de
comida, de refeição. Por rigor de lógica as espécies eucarísticas, quando
colocadas para a veneração dos fiéis, deveriam ser postas em pratos de comida e
não em ostensórios luxuosos. Porém, as próprias autoridades eclesiásticas são
as primeiras a não obedecer aquilo que escrevem para os outros.
Em consonância com o que acabou
de ser dito, a festa de Corpus Christi deveria ser uma oportunidade para uma
profunda catequese sobre o que é, de fato, a Eucaristia. Infelizmente a crise
antes mencionada levou a se pensar na Eucaristia como o sacramento da
"carne” do homem histórico Jesus de Nazaré. Assim a concepção comum
presente na mente de bispos, padres e fiéis é que os termos "carne”,
"corpo”, "sangue” se refiram exclusivamente ao corpo biológico de
Jesus. A Eucaristia seria a transformação de algumas hóstias e de um pouco de
vinho num amontoado de células e moléculas do corpo físico do Jesus histórico
que viveu na Palestina há dois mil anos.
Porém, quando nos voltamos para
os textos bíblicos não é essa a compreensão que temos. O termo "corpo” (em
hebraico "basar” e em grego "soma”) não significa apenas o aspecto
biológico, mas a pessoa inteira na sua condição de corporalidade. Trata-se da
pessoa na sua totalidade revelada em sua forma visível e em comunicação com os
outros. Jesus, segundo Marcos (14,22-24), o mais antigo dos evangelhos, ao
dizer na última ceia "éstin tò somá mon” ("isto é o meu corpo”) e
"éstin tò haîmá mon” ("isto é o meu sangue”), não está se referindo
apenas ao seu corpo biológico, às células do seu corpo físico, mas à totalidade
da sua pessoa de Filho de Deus encarnado. E quando convida os discípulos a
comerem do seu "corpo” e a beberem do seu "sangue” Jesus não está
pensando num ritual antropofágico ou canibal, mas num gesto de comunhão e de
adesão plena à sua pessoa.
O biblista italiano Settimio
Cipriani, que estudou profundamente esta questão, afirma que as palavras de
Jesus poderiam ser traduzidas da seguinte maneira: "O que estou fazendo
(partindo o pão e distribuindo-o) significa a oferta da minha pessoa por
vocês”. De fato, nas culturas antigas, especialmente na cultura judaica, o ato
de comer e de comer juntos não tem apenas o significado biológico de ingerir
substâncias para saciar a fome e manter-se vivo. Comer e comer juntos tem um
significado simbólico, sacramental: significa que os comensais participam da
mesma sorte, estão unidos pelo mesmo destino, estão em comunhão entre si. Assim
sendo, a participação na Eucaristia, na Ceia do Senhor, é um gesto sacramental
através do qual o cristão e a cristã manifestam a sua adesão total à pessoa de
Jesus e se dispõem a participar da mesma sorte do Mestre. Portanto, reduzir a
Eucaristia a um significado meramente biológico, a um pedaço da carne biológica
de Cristo (como se tem feito em alguns casos de supostos milagres eucarísticos)
é desvirtuá-la completamente do seu verdadeiro significado sacramental.
Isso pode ser confirmado pelo
texto eucarístico do Evangelho de João (6,51-56). Mesmo não narrando a
instituição da Eucaristia, João apresenta Jesus convidando seus ouvintes a
comerem a sua carne e a beberem o seu sangue. Sabemos que na Bíblia o termo
"carne” (em hebraico "basar” e em grego "sárx”) não significa
apenas o elemento físico, biológico, mas a pessoa humana, na sua totalidade,
existindo como ser frágil e mortal. É o ser humano total na sua condição de
caducidade. Por sua vez o "sangue” (em hebraico "dam” e em grego
"haîma”) não significa apenas o líquido vermelho que escorre nas veias do
ser humano, mas a sua vida, o seu existir pleno. O convite de Jesus feito a
seus ouvintes significa um convite a entrar em plena sintonia com a sua pessoa
e o seu projeto de vida. Participar da Eucaristia é aderir ao mistério do Filho
de Deus que "se fez carne” (Jo 1,14), ou seja, que abriu mão da sua
condição divina para viver entre nós como "simples homem” (Fl 2,7-8).
Participar da Eucaristia não é participar de um rito antropofágico, no qual se
come um pedaço da carne biológica do Jesus histórico, mas comungar da sua
fragilidade, da sua fraqueza, da sua encarnação. Se entendêssemos isso
causaríamos uma verdadeira revolução no cristianismo e contribuiríamos para o
advento de uma nova humanidade.
Por fim, a festa de Corpus
Christi deveria ser um momento para se pensar numa solução definitiva para o
problema daquelas milhares de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e que
são privadas da celebração eucarística dominical, por falta de um ministro
ordenado que a presida. Se a Eucaristia é o centro e o cerne da vida cristã,
deixar uma comunidade sem celebração eucarística dominical é impedi-la de viver
a sua verdadeira identidade. Soluções já existem como já tive oportunidade de
mostrar, mas a hierarquia resiste e não quer adotá-las. Se a hierarquia não
resolve, cabe às comunidades cristãs abandonadas encontrarem uma solução. E
Tertuliano, um escritor cristão do final do II e início do III século, propôs
uma solução muito simples. Mesmo reconhecendo que em circunstância normais cabe
ao bispo e seu conselho presbiteral presidir a Eucaristia, Tertuliano afirmava:
"Onde não há um colégio de ministros inseridos, tu, leigo, deves celebrar
a Eucaristia e batizar; tu és, então, o teu próprio sacerdote, pois, onde dois
ou três estão reunidos, aí está a Igreja, mesmo que os três sejam leigos”.
[Autor de Antropologia da
formação inicial do presbítero, pela Editora Loyola].
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